domingo, 5 de março de 2017

Calicem

"Uma garrafa de vinho. Aliás, duas. Duas boas garrafas de vinho. Uma mesa, pão e queijo. Um cobertor e um aquecedor. Noites frias lá fora mas tão aconchegantes cá dentro!
As duas garrafas eram diferentes, diferentes d.o.c e meio grau de álcool de diferença mas parecer ser uma diferença de cinco graus. Forte e subtil. Aquelas coças que damos ao nosso inconsciente sem nos apercebermos. Coças boas e maravilhosas. Lágrimas espessas em copos de vinho que mesmo dentro do cenário já baço, estão tão brilhantes...e melhor ainda, chiam! Chiam de esperança de uma felicidade que  não veio por ter sido pedida mas que surgiu por ter sido merecida. E quando chiam é porque já não podem mais controlar tal entusiasmo, tal orgulho, tal vontade de gritar bem alto e com todas as letras : EU SOU FELIZ!
Não, não é dificil ser-se feliz. A felicidade é um conjunto de momentos que, juntos, fazem toda a diferença.
Dois copos de vinho e dois dedos de conversa. Dois corpos cheios de vontade de calor e duas pessoas a derreter, por dentro e por fora. A música ambiente ritmava as palavras que nos saíam da boca. A propósito, revelou-se uma boa moderadora. Quer de clima quer de vontades. Quer de estupidezes quer de verdades.
Uma manta, não muito grande mas suficiente para nos tapar as pernas. Estivemos horas sentados à mesa a averiguar pensamentos um do outro e olhares, tantos e tão poucos que se quiseram penetrar neles mesmo de tanto bem se quererem. Eram olhares sem malícia mas com tanta perícia. Eram olhares matreiros mas inteiros;  olhares cheio de luz e de sol, não artificial mas criado por nós.
Quatro copos de vinho e menos conversa, mais contacto visual e necessário, como se fosse um encontro lendário.
Oito copos de vinho e nada muda a não ser a focagem das coisas, os olhares ficam mais fechados se bem e se for preciso, ainda mais apaixonados.
Duas garrafas de esgalhão. Conversas e beijos importantes. Conversas em circunstância e não de circunstância. Relutância e renitência fe um futuro incalculado e de uma felicidade julgada inexistente. Coisas do outro mundo, que até parecem deste mas não são!
No final das garrafas, que eram de reserva,  sobrámos nós, tal como sempre (em qualquer um do estado que seja). Concluo que éramos ou somos a essência daquelas garrafas: nós somos a reserva, a grande reserva um do outro. Reservados, guardados, viciados, entrelaçados e completamente insanos de vida."

Vanessa Cardui
(Excerto de romance)

*calicem= copo (latim)

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